A história do
conhecimento é uma seqüência de erros, equívocos e frustrações. Este o motivo por que Sócrates costumava explicar: "Só sei que
nada sei, e que a
filosofia começa quando começamos a duvidar." Outra coisa não tem feito o
homem, desde as cavernas da era pré-lacustre, do que errar para aprender. A história da civilização não é, portanto, somente a da luta de
classes, segundo o
materialismo dialético, mas a própria história do erro. Como, entretanto, do erro, do equívoco, da frustração, nasceram sempre e em todos os tempos o
conhecimento e a sabe
doria, mais uma vez se com
prova, no terreno do
pensamento, o processo dialético da
natureza, que do pântano arranca os lírios, da larva a borboleta, do peca
dor o santo, do caos da sociedade capitalista os contornos do socialismo.
Quando Demócrito firmou o
princípio atômico da constituição do mundo, cometeu toda uma série de erros, atribuindo à suposta partícula indivisível a diversidade de peso no vácuo, e dotando-a de ganchos para a composição da
matéria. Não obstante, havia descoberto, mais de trezentos anos antes de Cristo, o segredo da constituição do mundo, que a física experimental só encontraria vinte e quatro séculos depois
Ao formular a base
ética'>dial
ética da sua
filosofia, Hegel unificou o "ser" e o "
pensar" de Kant, mas caiu no equívoco da "idéia universal", espécie de encarnação filosófica do caprichoso
deus antropomórfico das religiões. Feuerbach teve a coragem de fazer a
filosofia descer do empíreo hegeliano à
terra, para ligá-la às
ciências naturais, mas caiu na frustração da "
antropologia", novamente separando o "ser" do "
pensar" e transformando este último numa simples função da
matéria. Não obstante, apoiados na
ética'>dial
ética de Hegel e no
materialismo de Feuerbach, Marx e Engels criaram o
materialismo dialético, dando novo impulso ao
pensamento filosófico, abrindo novas possibilidades à investigação dos processos históricos e sociais, oferecendo base científica às aspirações do socialismo
empírico.
Foram os
gênios transforma
dores do século 19, tornando-se cre
dores de todos os que — e são a
humanidade, — desfrutam hoje da possibilidade de uma caminhada mais rápida nos rumos da civilização socialista. Stanley Jones, o grande
missionário protestante, conhecido como "o cava
leiro do Reino de Deus", observa, em "Cristo e o Comunismo", que Marx impulsiona a história, limpando o templo da praga dos vendilhões, à semelhança do chicote do rabino, que ainda hoje espanta os cristãos comodistas.
Entretanto, a
filosofia que Marx e Engels ofereceram ao mundo, como a mais alta expressão do
conhecimento, não passa de uma forma híbrida, que se travestiu de
tese'>sín
tese. A
tese de Hegel e a
tese'>antí
tese de Feuerbach não se conjugam na moderna escolástica do
materialismo dialético, pois ali estão, sem dúvida,
forçadas pela violência gráfica, duas palavras contraditórias e irredutíveis, que não encontram caminho para o desenvolvimento da
tese'>sín
tese. O
materialismo é a porta fechada, diante da qual se interrompe, abruptamente, o processo dialético de Hegel.
Marx condenou a "incapacidade burguesa" de Proudhon para
compreender a
lei fundamental da
ética'>dial
éticahegeliana, a "unidade dos contrários", e chamou-o de falsifica
dor, por ter feito a escolha indébita de um dos contrários, a
propriedade "boa", rejeitando dessa maneira a própria
ética'>dial
ética. Mas, em compensação, — rejubile-se o
espírito de Proudhon! — ele e Engels não fizeram outra coisa. A luta dos contrários foi simplesmente frustrada na elaboração da
ética'>dial
ética moderna, que se formou pela mesma e indébita escolha de um dos contrários. O
materialismo dialético considerou "mau" o
princípio espiritual, escolhendo como "
bom" a
penas o
material. Por isso mesmo, não obstante a enorme contribuição que trouxe à marcha do
conhecimento, não é mais do que uma tentativa de
tese'>sín
tese.
POSIÇÃO DO MATERIALISMO DIALÉTICONão resta dúvida que o
materialismo dialético é o mais avançado passo da
filosofia materialista, graças ao aproveitamento da tríade básica da mais antiga
filosofia espiritualista, que podemos encontrar desde o taoísmo chinês ao druidismo gaulês, do antigo bramanismo à
filosofia jônica, de Sócrates e Platão ao Evangelho do Cristo.
Diante da sua
concepção do mundo e do seu
método de
análise histórica, o
materialismo fixista do século 18 e o próprio mecanicismo parecem conjecturas infantis. Na "Dial
ética da Natureza", Engels observa, a propósito: "A
ciência natural da primeira metade do século 18 estava muito acima da Antigüidade grega no tocante ao
conhecimento e à
classificação dos materiais, mas, ao mesmo tempo, abaixo dela, no domínio
ideal desse
material, na
concepção da
natureza."
O mesmo podemos hoje dizer, no tocante à posição do
materialismo dialético em face à
filosofia idealista alemã do século 18, e particularmente à escola hegeliana. Repete-se, nesse caso, o que se verificara com Feuerbach diante de Hegel, no terreno da
análise das relações sociais. A
ética'>dial
ética marxista se nos apresenta, por isso mesmo, como um pássaro de asa quebrada, que, apesar de bater com
energia a asa que lhe sobrou intacta, não consegue elevar-se
além da poeira da
terra. Falta-lhe a visão tão-somente, de metade da
realidade objetiva, dessa
realidade que, ele tanto defende e a que tanto se apega. Marx e Engels preferiram ignorar essa metade, que Hegel lhes oferecera, com os seus olhos de con
dor, para se reduzirem à miopia de Feuerbach. E cometeram assim o maior equívoco da moderna história da
filosofia; tomando, como o fizera Proudhon, a exclusão pela
tese'>sín
tese.
JUSTIFICATIVA DO EQUÍVOCO MARXISTASobram razões, entretanto, para esse equívoco. Não podemos
condenar Marx e Engels,
bem como Feuerbach, em última instância. Se este último, rebelando-se contra a "divinização dos
fenômenos naturais impressionantes" pelo
homem primitivo, pela
razão instintiva, quis apegar-se à raiz latina da palavra
religião o verbo "religare", para construir uma
religião humana de fraternidade terrena, sem compromissos
transcendentes, como Comte o tentaria mais tarde. Os dois primeiros, pelo contrário, rejeitaram até mesmo a velha raiz, tomados de uma verbo
fobia que ainda hoje impregna os seus segui
dores. E levantaram, no pó do
planeta, a primeira grande r
evolução filosófica, política e social, contra a imensidade cósmica do Espírito.
Foi, não um temporal num copo d'água, mas uma tormenta num grão de areia. Não obstante, como nesse grão de areia é que, segundo Kardec, nascemos, crescemos, vivemos, morremos, renascemos e progredimos sempre, pois "tal é a
lei", a revolta representa, para nós, toda uma época histórica, de importância igual à rebelião dos
anjos, no
princípio dos tempos.
A esses novos lúcíferes assistiam as razões poderosas da
mistificação religiosa da época. A
religião, distanciada da sua velha raiz, convertera-se em instrumento de
opressão e da mais deslavada velhacaria. Nem foi por outro motivo que Kardec declarou, em "A Gênese", com a clareza e a precisão que o caracterizavam: "As religiões, infelizmente, têm sido sempre instrumentos de dominação. O papel de
profeta tem tentado as ambições secundárias, e tem-se visto surgir uma multidão de pretensos revela
dores ou
messias que, favorecidos pelo prestígio desse nome, exploram a credulidade, em proveito do seu
orgulho, da sua
cupidez ou da sua preguiça, achando mais cômodo viver na dependência dos iludidos. A
religião cristã não esteve ao abrigo desses parasitas". (Usamos o
original da terceira edição francesa, de 1868, revista por Kardec. Na tradução brasi
leira da FEB, a palavra "domination" foi traduzida por "demolição"). (Nota do autor). As igrejas haviam corporificado o
princípio religioso, no terreno social, na forma de organizações político-financeiras, sedentas de dominação. Os sacerdotes
nada mais eram do que os n
egociantes do
culto. E este, como
bem o definiram os
materialistas dialéticos, "o suborno da
divindade". A corrupção capitalista invadira os
céus, podendo acrescentar-se, por isso mesmo, com Tcheskiss: "O desenvolvimento da
ciência provoca a
morte da
religião." Já Kardec o dissera, no mesmo livro citado: "Se a
religião se recusa a marchar com a
ciência, a
ciência marchará sozinha." Querer que a capacidade de
análise objetiva de Marx e Engels falhasse nesse terreno, despercebida do aspecto brutal da
religião e ao seu
verdadeiro papel na estrutura social, seria querer demasiado. Por outro lado, supor que esses anátomo-patologistas da sociedade capitalista pudessem agir, diante do corpo
enfermo da sociedade da época, como psiquiatras, descobrindo a
malversação dos
elementos espirituais no desequilíbrio religioso, seria des
conhecer o
fenômeno das especializações no campo da
ciência.
Marx e Engels fizeram o que puderam. Pura e simplesmente. O que assombra porém, é que, um século depois, os seus
discípulos e continua
dores ainda arrastem a mesma asa quebrada, sem
compreender a necessidade de avançar na
concepção do mundo, em obediência, pelo menos, ao "processus" da sua própria
ética'>dial
ética.
UM GESTO DE FRATERNIDADEA explicação do
fenômeno religioso como simples "humanização da
natureza", como a "
projeção do
homem ao
infinito", é mais literária do que filosófica, não tendo absolutamente
nada de científica. O próprio Marx quase o reconheceu quando acrescentou à
tese contemplativa de Feuerbach os seus
princípios dinâmicos. Perdoa-se como um dos muitos equívocos, através dos quais se elabora dialeticamente o
conhecimento. Admitir-se, porém, a sua perpetuação no mundo filosófico seria um crime de lesa-cultura.
Primeiro, por que não há nenhuma base positiva, experimental ou de observação, para com
provar essa
teoriade emergência; depois, porque há uma infinidade de
provas em contrário, suficientemente documentadas, com base na mais rigorosa investigação científica, feita por cientistas insuspeitos, tão
materialistas e descrentes como Feuerbach, Marx, Engels e os seus continua
dores.
Ora, parece e
vidente que uma
teoria, contraditada pelos
fatos, mormente através da investigação científica, não a
penas uma, mas milhares de vezes, está irremediavelmente falida. Por outro lado, a afirmação de que "a sociedade burguesa tem interesse na explicação religiosa, teo
lógica, dos
fenômenos sociais" (Tcheskiss),
nada tem a ver com a
realidade do
fenômeno religioso em si, como a
realidade das alterações fisio
lógicas não se invalida nem se obscurece em
virtude da exploração dos charlatães da medicina. Além disso, é preciso notar que a
filosofia espírita é tão contrária à
teologia e às explicações teo
lógicas da
natureza quanto as próprias
ciências naturais, não correspondendo, por isso mesmo, aos interesses de
classe da burguesia.
No seu trabalho "Dial
ética e Metapsíquica", afirma Humberto Mariotti: "A simples
análise de um único caso de
materialização deita por
terra o raciocínio filosófico, e queiram ou não, uma nova idéia do ser e do mundo começará a mover-se na mente do pensa
dor." Com isto, sim, temos uma afirmação científica, devidamente com
provada, pelos
fatos, de que nos dão exemplo os casos clássicos de Richet, Myers, Lodger, Lombroso,
materialistas convertidos ao
espiritualismo, diante da
realidade incontrovertível da fenomenologia
espírita. Quando, pois, o
materialismo dialético reduz à mesma pauta da
superstição primitiva a
religião ancestral, com as suas formas de exploração social, e os modernos trabalhos de pesquisa científica no terreno da sobrevivência, comete uma
heresia filosófica de proporções catastróficas. Em uma palavra: reduz a
teseética'>dial
ética à
tese'>antí
tese do
dogma-de-
fé, traindo a
tese'>sín
tese ou fechando a porta.
Não há, ao mesmo tempo, nenhuma justificativa para os homens que, "
bem situados" no mundo capitalista, deturpam os
fatos históricos e a própria
realidade presente, para sustentar a velha
tese superada do
materialismo científico, graças ao useiro processo da exclusão, ainda agora repetido pelos behavioristas e pavlovistas. Nessa cat
egoria de irremissíveis estão o dr. Emilio Troise com o seu "Materialismo Dialético", e, entre nós, os drs. Murilo de Campos, Leonídio Ribeiro, Henrique Roxo, — o humorista científico do "
delírioespírita episódico" — e, ultimamente, como a mais recente contribuição da "cultura" indígena à luta contra o Espiritismo, o prof. Silva Mello, com o seu "Mistérios e Realidades Deste e do Outro Mundo". Homens de
ciência, que preferem negar as experimentações rigorosamente científicas de
personalidades como Crookes e Richet, ou desnaturá-las e deformá-las, para sustentar uma
teoria sem base, ou melhor, cuja suposta base se esvai aos olhos de todos, com a própria evaporação da
matéria, na era da física nuclear.
O livro de Mariotti não é, por isso mesmo, a
penas um
esforço no sentido de colocar a
verdade filosófica e científica da sobrevivência no seu devido lugar. Mais do que isso, é um gesto de fraternidade, um apelo do coração a esses transviados do
conhecimento, na esperança de salvá-los, ainda, do implacável naufrágio da história.
NEM UM PASSO À FRENTEQuando Engels escreveu o seu artigo contra o
método empírico-indutivo de Bacon, ou melhor, confundindo esse
método com "o
êxtase e a
vidência, importados da América", de que se fazia vítima o
empirismo inglês, na
pessoa do "eminentíssimo zoologista e botânico Alfred Russel Wallace, o
homem que, simultaneamente com Darwin, apresentou a
teoria da
evolução das espécies pela seleção
natural, o
materialismo dialético era uma conquista recente, um equívoco em forma de desenvolvimento, e não nos caberia censurá-lo por essa digna
atitude de combate. Engels não poderia entender de outra maneira o "desencaminhamento" de Wallace. Vê-se, não obstante, desse mesmo artigo, que Engels não ficaria no terreno da
teoria. Embora
mal, com a imperícia de quem jamais se interessara pelo assunto, procurou justificar as suas afirmações, através da observação e da experimentação.
O artigo de Engels foi publicado pela primeira vez em 1898. Devia ter sido escrito, segundo encontramos na edição brasi
leira da "Dial
ética", em 1878. Engels criticava também os trabalhos de Crookes, Aksakoff e Zöllner. É uma
crítica violenta e irreverente, em que ele chega a considerar o Espiritismo "a mais
estéril de todas as superstições." Como se vê, a afirmação não era,
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ética, mas empírica, inteiramente gratuita, e o longo roteiro das experiências
espíritas e metapsíquicas aí está para desmenti-la. Mas tinha a sua
razão de ser. Podemos dizer, com Hegel, que o Zeitgeist, o
espírito da época, a justificava. O que espanta, entretanto, é que ainda hoje, quase um século depois, o artigo de Engels seja a única pauta dos que, como o prof. Silva Mello, desejam eliminar do mundo em que vivemos, por incômoda, a
realidade dos
fenômenos
espíritas, sem seguir, sequer, o exemplo de Engels no tocante à experimentação própria.
O DESPREZO PELA DIALÉTICADizia Engels, no artigo: "... não se pode desprezar impunemente a Dial
ética." E dizia
bem. Senão, vejamos: observados os
fatos com o máximo rigor científico, através de centenas de sessões, — obtendo, inclusive, na presença de Gabriel Delanne, a célebre e impressionante
materialização de Bien-Boa, na casa do general Noel, na Argélia, — Charles Richet se convence da
realidade dos
fenômenos, escreve o "Traité de Métapsychique", "A Grande Esperança" e o "Sexto Sentido", mas só concorda com a sobrevivência depois que a poderosa
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ética de Ernesto Bozzano lhe demonstra a
obscuridade das
teorias que atravancam a sua própria
ciência (expressões da carta de Richet a Bozzano, publicada no número de 30 de maio de 1936, da revista londrina "Psychic News").
Cesare Lombroso, o grande criminologista e psiquiatra, autor de severas
críticas ao Espiritismo, encontra-se, não a
penas em uma, mas em várias sessões realizadas em Milão, Gênova e Turim, com a
materialização de sua própria mãe, graças à
mediunidade de Eusápia Palladino, e proclama o
fato com entusiasmo e
emoção, na revista milanesa "Luce e Ombra". Mas o prof. Silva Mello descobre, algumas dezenas de anos mais tarde, em nosso País, que a
médium era simplesmente "uma embusteira", e afirma: "descobriu-se que ela fraudava de maneira sistemática e com a maestria de uma velha perita na questão". Lombroso, como se vê, não fora mais do que um beócio, deixando-se empolgar pela
emoção mais estúpida que se possa imaginar, quando tomou um boneco ou um farsante pela ressurreição da sua própria mãe! Que se admitisse a farsa numa comédia de Hollywood, vá lá, mas na vida de um
homem como Lombroso é o que de mais grotesco se possa imaginar.
A frase de Engels se aplica também, como luva, ao caso do trio H. G. Wells, Julian Huxley e G. P. Wells. Não cometeram eles, é
verdade, a gafe de negar a
realidade dos
fenômenos. Pelo contrário, como o dr. Troise, re
conheceram, prudentemente, que os
fatos existem e não podem ser riscados da história ou apagados com a esponja da negação. No volume "Science of Life", da coleção "Man's mind and behaviour", traduzidos e publicados entre nós com os títulos "A Nossa Vida Mental", coleção "A Ciência da Vida", reconhecem eles: "Não podemos absolutamente rejeitar a e
vidência de tais
fenômenos". E acrescentam, aliás com muita oportunidade,
censurando os que os negam: "Lembremo-nos, segundo Richet, de que grandes cientistas, como Bouillaud, declararam que o telefone era ventriloqüia, e cientistas ainda maiores, como Lavoisier, a
firmaram decisivamente que não poderiam cair pedras do
céu, pela
razão muito simples de que no
céu não há pedras..." Não obstante, — ah, o desprezo pela Dial
ética! — terminaram apelando, num desesperado
esforço de rejeição à
tese espírita, ao "realismo" da Idade Média, para explicar os
fatos: "Quando fílosofamos, — dizem eles, — nas horas de recolhimento e de silêncio, talvez essa
filosofia não parta unicamente de nós, mas seja o próprio Homem, na
plenitude de si mesmo, que se revele através dos nossos
pensamentos".
Entenderam os
leitores? Esse Homem com "H" maiúsculo é a
verdadeira ressurreição da múmia filosófica da controvérsia entre "nominalistas" e "realistas", arrancada à
força, dos baús medievais, para enfrentar a
realidade fenomênica do Espiritismo, em plena era atômica.
A SOBREVIVÊNCIA CONTRA A EVOLUÇÃOMas não fica nisso o desprezo dos autores pela Dial
ética. Depois desse gigantesco retrocesso histórico, afirmam eles, como se dissessem uma novidade: "a
morte do
indivíduo é um dos
métodos da vida" (que dúvida!). E continuam: "Cada
indivíduo é uma experiência bio
lógica. Cada espécie progride pela seleção, rejeição ou multiplicação dos
indivíduos. Biologicamente, a vida deixaria de continuar para diante, se os
indivíduos não tivessem um fim e não fossem substituídos por outros. A idéia da imortalidade individual é absolutamente contrária à idéia da
evolução contínua".
E logo mais, numa dessas tiradas que se repetem de boca em boca e de livro em livro, enquanto alguém não pede, como Sócrates, a definição do seu
verdadeiro sentido: "São os moços, e não os velhos, os que desejam a imortalidade
pessoal".
É
pena que não mencionem a fonte desse espantoso dado estatístico, pois gostaríamos de confrontá-lo com o número de Mocidades Espíritas, Católicas, Protestantes, Teosofistas, e dos muitos outros jovens
espiritualistas não filiados a nenhuma
seita, por que estranho motivo não deixam o terreno exclusivamente aos velhos, monopoliza
dores modernos da velha aspiração humana da sobrevivência.
Dizer,
além disso, que a imortalidade individual é contrária à
evolução contínua, é "fazer de conta" que essa imortalidade seja bio
lógica. Ora, absurdo dessa monta ninguém poderia aceitar. Como, pois, interpretar-se a
atitude desses homens habituados a lidar com as coisas do
pensamento, a acompanhar e divulgar os
conhecimentos científicos, senão pelo desprezo à Dial
ética?
A TESE DAS "'MATERIALIZAÇÕES ROMÂNTICAS"Não se pense, porém, que o desprezo ficou no que dissemos. Longe disso, ele foi e vai muito
além. Quando se trata de contradizer o Espiritismo e de
fatos
espíritas, tudo parece permitido aos homens de
ciência e aos homens de letras. Não há fronteiras para a imaginação, nem limites para o raciocínio.
É assim que, ilustrando o volume com varias fotografias
espíritas, os autores reproduzem um quadro de Tissot e o comparam à famosa fotografia da "cabeça
materializada", obtida por Notzing e madame Bisson, com a
médium Eva Carriere; para concluírem: "Antes da época dos flagrantes fotográficos, o grande pintor Tissot mostrou-nos o que acreditava ser a
reencarnação de uma mulher amiga, acompanhada do seu
espírito-
guia; é uma bela pintura, onde ele reproduziu a impressão de
verdadeira beleza, recebida numa sessão
espírita. Os
métodos mais rigorosos, que hoje se usam, já não permitem essas sublimações do testemunho visual: as
câmaras fotográficas mostram as coisas como elas se passam. E vemos que essas figuras e rostos
materializados começam pequenos e às vezes desproporcionalmente. Quaisquer que possam ser essas figuras e faces achatadas e amarfanhadas, não são, certamente,
materializações em carne e sangue humano".
Richet escreveu o "Traité" sem aceitar a
tese espírita, mas contudo jamais cometeu a
heresia de dizer que as
materializações eram fantoches amarfanhados. Encontramos no "Traité" essa mesma cabeça de que se servem os Wells e Huxley, mas apresentada em outro sentido, ou seja, no
bom e
verdadeiro sentido que se lhe deve dar: como uma das mais belas fotografias já obtidas, revelando e documentando, de maneira insofismável, uma das fases do processo de
materialização. Não tivéssemos essa e outras fotografias obtidas por Notzing e madame Bisson, e esses mesmos ilustres cavalheiros nos acusariam de não havermos surpreendido jamais uma das fases daquilo que chamamos "processo de
materialização". Não teriam dúvidas em utilizar esse
fato como
argumento "poderoso" contra a
teoria da formação progressiva do fantasma, com a
matéria plástica do
ectoplasma ou teleplasma.
Perguntaremos, porém, a esses ilustres divulga
dores do
conhecimento, se não tiveram a oportunidade de ver outras fotografias, como a
médium Linda Gazzera, constantes do seu livro "Fotografias de Fantasmas", livro em que elas figuram, não através de clichês, mas nas próprias cópias fotográficas, para que não haja dúvidas.
MAIS VALE UM PÁSSARO NA MÃOEssas fugas pela tangente representam o
método mais freqüente de combate ao Espiritismo, inclusive por p
arte dos
materialistas dialéticos. Para os observa
dores serenos e sensatos, bastaria essa insistência na deturpação dos
fatos e na distorção do raciocínio, para com
provar a seriedade e a importância desses mesmos
fatos. Aliás, ainda com Engels, encontraremos o
argumento mais apropriado: "A única questão consiste em saber se o
pensamento está ou não certo, e o desprezo pela
teoria é, e
videntemente, a maneira mais segura de se
pensar de maneira
naturalista, e, conseqüentemente, de modo errado."
Engels não ficaria
mal nas fi
leiras
espíritas. De
fato, ele via
bem estes problemas. O desprezo pela
teoriaespírita, única que pode explicar os
fenômenos, tem levado esses homens a trair a Dial
ética a todo momento, entrando a fundo e às cegas pela Sofisticaria. A punição da Dial
ética, porém, não se faz tardar. Os que pensam de maneira
naturalista, voltando as costas à
teoria, terminam de encontro à parede, com a espada do ridículo no peito. Porque a "maneira
naturalista de
pensar", a que Engels se refere, é a do
pensamento a priori, instintivo, que não provém da
razão orientada pelo processo da civilização, mas da herança comum e obscura do passado biológico da espécie. Age por meio de impulsos mecânicos, é um automatismo
inconsciente. Dir-se-ia, diante das suas manifestações, que o
homem tem a vocação da fuga. Como a lebre, colhida de surpresa na beira da estrada, precipita-se no mato, assim o
homem, colhido na sua posição
materialista pela surpresa dos
fatos supranormais, precipita-se no matagal das lembranças ancestrais. Improvisa
teorias e fabrica rótulos com a desenvoltura inconseqüente da avestruz ao en
terrar a cabeça na areia. Comete, com uma
confiançaabsurda na impunidade, o crime da desfiguração da
verdade, ou passa a
penas a negar, indiferente a todas as
provas e
argumentos, como a criança teimosa que não quer ver a louça quebrada. É o outro lado da crendice o reverso do fanatismo religioso. Por isso, o médico Sergio Valle nos lembra, no livro "Silva Mello e os Seus Mistérios", recentemente publicado: "Enquanto não se realize o fiat da
ciência (que se mantém, teimosamente,
orgulhosa e cega), para i
luminar os
fatos que possuímos, não é
justo que uma
criatura sensata despreze o que se acha detido, seguramente detido nas suas mãos, por mínimo que seja, pelo que voeja no
espaço do fanatismo religioso ou do fanatismo científico".
INTERPRETAÇÃO DO HOMEMO
homem, segundo o
materialismo, seja ele mecanicista dialético, é um ani
mal pensante. Para Marx, e portanto para o dialético, é ainda o resultado da ação simultânea do trabalho, sobre ele e a
natureza. Agindo sobre o meio em que vive, trabalhando-o, ele se modifica a si mesmo. Essa
concepção materialista do
homem não se enquadraria na
doutrina de nenhuma das religiões corporificadas em igrejas. O Espiritismo, entretanto, não a contradiz. A
penas a amplia, ensinando que o
princípio inteligente, no
homem como no ani
mal, independe do corpo. E por isso é condenado e combatido, ao mesmo tempo e por todos os lados, pelos religiosos e pelos
materialistas. No capítulo III de "O Livro dos Espíritos", de Kardec, encontramos esta definição: "O trabalho é
leida
natureza, por isso que constitui uma necessidade, e a civilização obriga o
homem a trabalhar mais porque lhe aumenta as necessidades e os
gozos." Logo adiante: "Sem o trabalho, o
homem permaneceria sempre na
infância, quanto à
inteligência."
A
lei de
causas e
efeitos é o
princípio fundamental da Doutrina, a
evolução constitui a sua própria essência. Por outro lado, não se estruturou o Espiritismo através de formulações hipot
éticas. Todo o seu edifício doutrinário se assenta na observação e na experimentação. Richet, que condenava a "credulidade excessiva" de Kardec, já o notara, no "Traité". Dialético por
natureza, em essência e pelos
métodos que emprega, o Espiritismo, se
bemestudado, revela-se o legítimo e
natural herdeiro do título a que se candidata o
materialismo dialético:
tese'>sín
tese do
conhecimento. Realmente, o Espiritismo, diante dos mundos em litígio do
materialismo e do
espiritualismo, não peca por exclusão, não comete o
pecado proudhoniano ou marxista da escolha. Na sua estrutura encontraremos aquelas duas concepções, não a
penas conjugadas ou ajustadas, mas superadas na
transfiguração de um novo corpo, — a
tese'>sín
tese — em que a
ciência, a
filosofia e a
religião, as três províncias antagônicas do
conhecimento, aparecem encadeadas no
verdadeiro "processus" da mais pura
ética'>dial
ética, uma resultando da outra.
No "Anti-Dühring", Engels lembra as origens do marxismo e expõe a
doutrina como a seqüência
lógica destas fases: a
filosofia, a
economia-política e o socialismo. No Espiritismo, a seqüência se tresdobra na
ciência, na
filosofia e na
religião. Partindo da observação e da
análise dos
fenômenos materiais, de
natureza supranor
mal, criamos a
filosofia do ser, e atingimos, logo a seguir, a
religião. Esta, porém, não se traduz na organização de uma nova igreja, de um novo
culto, de um novo "suborno da
divindade". Nem se traduz no
antropomorfismosocialista, erguido no altar da produção. Mas é, ao mesmo tempo, a comunhão de bens, de corações e de
espíritos, pela qual todos ansiamos,
espiritualistas e
materialistas, para a construção do mundo melhor amanhã.
Porque o
homem, para o Espiritismo, não é a
penas "o último anel da vida ani
mal na
terra" (" A Gênese", Kardec), nem o produto quase exclusivo da ação simultânea do trabalho; mas também aquele ser que se mostra nos
fenômenos de
materialização, de
aparição, de visão, de voz direta, de
incorporação, de
psicografiaou de
tiptologia, para demonstrar "aos que ficaram" que ele não se extinguiu com a
morte, e que o seu conteúdo
moral continua a viver e a se desenvolver indefinidamente, na multiplicidade das formas, sem pre
juízo da id
entidade substancial.
O VELHO E O NOVOÉ e
vidente que o
fato da sobrevivência alarga a
concepção humana da vida e do mundo, muito
além dos limites terrenos ou
orgânicos da
concepção materialista. Oliver Lodge classificou o Espiritismo de "nova r
evoluçãocopérnica" Assim como Copérnico rompeu de vez o ergástulo mental do
geocentrismo, a r
evolução espíritadesloca dos organismos materiais o conceito de vida, rompe o organocentrismo da biologia moderna e reduz a uma simples confusão do
efeito pela
causa o chamado "
materialismo-psicológico".
Em
conseqüência,
leis e perspectivas novas aparecem, exigindo
verdadeira revisão dos
conhecimentos do
homem e do seu modo de encarar a vida e o mundo. Mais uma vez nos deparamos com a luta clássica entre o velho e o novo tão
bem definida no Evangelho do Cristo e nas obras de Kardec.
VAGAS ASPIRAÇÕESAlegam os mais
ferrenhos
materialistas que o
conhecimento da sobrevivência, — se de
fato ela existisse, — não serviria senão para perturbar a visão presente do
homem desviando-o da execução pura e simples das tarefas imediatas. Kardec, que condenou a vida contemplativa, e pr
egou a necessidade da ação contínua, dando o exemplo concreto da sua própria vida de militante
espírita, replica: "... a incerteza, no tocante às coisas da vida futura, faz que a
homem se lance, com uma espécie de frenesi, sobre as da vida
material."
A réplica de Kardec não exige demonstrações. A vida moderna, baseada no
materialismo prático do mundo capitalista, vale por uma experiência
natural, em
escala de assombro. Nunca se viu tamanho frenesi na procura dos bens materiais. A advertência de Bacon: "Busca primeiro as boas coisas do
espírito, que o resto será suprido ou não sentirás a sua falta", com base naquela do Cristo: "Busca primeiramente o Reino de Deus e a sua
justiça, e tudo o mais te será dado por acréscimo", não soa no coração, mas a
penas nos tímpanos desatentos do
homem moderno. Diante disso, poderíamos esperar do
materialismo teórico ou filosófico uma nova aplicação do
princípio de Hahnemann, — similia similibus curantur — para curar o mundo desse
delíriofebril? Kardec diz ainda: "Esse é o inevitável
efeito das épocas de transição. O edifício do passado rui, sem que o do futuro esteja construído. O
homem é como o adolescente, que não tem mais a
crença ingênua dos primeiros anos e não adquiriu ainda os
conhecimentos da idade madura. Não possui mais do que vagas aspirações, que não sabe definir."
A sociedade socialista, baseada na
filosofia materialista mais avançada, terminaria atormentada por essas "vagas aspirações" de que nos fala Kardec. E mais uma vez surgiria, no seu próprio seio, a luta entre o velho e o novo. A
tese'>hipó
tese não é gratuita, pois para tal não acontecer, seria necessário que não existisse uma vida futura, que a sobrevivência não fosse uma das
realidades do Universo.
DA ESPECULAÇÃO À EXPERIMENTAÇÃOMas Kardec não fala "por ouvir dizer", ele não foi jamais um
homem levado pela imaginação: foi um observa
dorrigoroso. E é através da mais pura
ética'>dial
ética que nos explica a
razão dessas vagas aspirações.
"Se a questão do
homem espiritual permaneceu até os nossos dias em forma de
teoria, é que nos faltaram os meios diretos de observação, que tivemos para constatar o estado do mundo
material, e o campo ficou aberto às concepções do
espírito humano. Enquanto o
homem não conheceu as
leis que regem a
matéria e não pôde aplicar o
método experimental, errou de sistema em sistema, no tocante ao mecanismo do Universo e à formação da Terra. Deu-se na
ordem moral o mesmo que na
ordem física; para determinar as idéias faltou-nos o
elemento essencial: o
conhecimento das
leis do
princípio espiritual. Esse
conhecimento estava reservado à nossa época, como o das
leis da
matéria foi obra dos dois últimos séculos. Até o presente, o
estudo do
princípio espiritual, compreendido na Metafísica, tem sido puramente especulativo e teórico; no Espiritismo é inteiramente experimental."
Chegados a este ponto, defrontamo-nos com o aspecto mais crítico da hora presente. De um lado, temos em marcha, com indiscutível eficácia, a aplicação do
método dialético, à história, à política, à sociologia etc., como a mais alta conquista do
espírito no terreno prático e objetivo. De outro, o abuso, que perdura, do
métodoempírico, nas questões espirituais, com as conseqüentes explorações e deformações da
realidade No meio, lutando entre as duas correntes, ambas poderosas, o Espiritismo, que não pode trair a
realidade espiritual, para endossar a aplicação
materialista da
ética'>dial
ética, e não pode trair a sua própria
naturezaética'>dial
ética, para apoiar o
empirismo da prática
espiritual. O resultado, infelizmente, é o que vemos: ele também, o Espiritismo, deformando-se, no aspecto sectário e
místico de uma nova
religião, ou na estrutura fria e
materialista da simples observação metapsíquica.
Todo o
esforço do
homem moderno tem de convergir para a superação dessa tremenda crise do
conhecimento. E a superação somente se fará possível com a compreensão dos
verdadeiros
princípios do Espiritismo como
doutrina ética'>dial
ética, por isso mesmo capaz de aplicar à história, à política, à sociologia, à
economia, à
arte, os seus
métodos de
análise, de observação, de pesquisa, sem se perder na
mística de confessionário, nem se confundir com o tumulto dos comícios subversivos. Além do misoneísmo das religiões, do reformismo do socialismo politico-liberal e da violência do
materialismo-dialético, o Espiritismo indicará ao
homem o caminho seguro das transformações substanciais da vida social, ou perderá a sua
razão de ser. Como esta última
tese'>hipó
tese não nos parece possível, o mais certo é que a história nos esteja empurrando, segundo observa Mariotti, apesar da incapacidade geral e desola
dora dos
espíritas de hoje, na direção do Espiritismo Dialético,
verdadeira
tese'>sín
tese do
conhecimento, com que nos acena Kardec.
Humberto Mariotti afirma que "a
realidade visível" da ação
espírita no mundo se traduz no cultural, e "mais do que em qualquer outra p
arte, no bibliográfico", faltando-lhe, entretanto, entrosar-se "no processo histórico da
humanidade". Este entrosamento se faz pela penetração nas massas através do seu aspecto "ingênuo", de
seita religiosa. Mas, se não houver, neste momento, a ação da alavanca da Filosofia Espírita, salvando o Espiritismo da "ingenuidade popular" e transformando-o, não mais em simples
crença, mas em
conhecimento, o processo
natural desse entrosamento pode ser desvirtuado, pelo trabalho de sapa das
forças contrárias.
Aos
espíritas, portanto, cabe o dever indeclinável de lutar para que esse entrosamento se realize. A bibliografia
espírita, — "quiçá insuperável pela de qualquer outro movimento filosófico", — deve descer das estantes e penetrar nas massas, não para se submeter à "ingenuidade" destas, mas para orientá-las no sentido da sua libertação
moral,
espiritual, intelectual e social. Para tanto, é necessário um novo trabalho de elaboração, de aglutinação, de sistematização do
conhecimento espírita, na forma de compêndios culturais e de manuais populares.
O aspecto religioso ou "ingênuo" do Espiritismo salvou-o da indiferença e da hostilidade conjugada de todas as
forças dominantes do século 19 e do século 20, escondendo-o no coração do
povo, onde ele viveu e progrediu em silêncio, e permitindo, ao mesmo tempo, o trabalho cultural dos intelectuais
espíritas. Temos hoje uma população
espírita no mundo, e temos uma cultura
espírita. Mas não temos a sociedade nem a civilização
espíritas, como observa Mariotti, e nem mesmo a necessária e prévia ligação entre as massas
espíritas e a cultura
espírita, para a
criação daquelas. Estamos, porém, no caminho dialético do desenvolvimento de uma nova civilização, e se
compreendermos isso, lutando para alcançar o futuro, chegaremos até lá.
Humberto Mariotti fez uma concessão de boa-
vontade ao "
pensar naturalista" quando deu ao seu livro o título de "Dial
ética e Metapsíquica". Porque o título
verdadeiro do volume seria o de "Espiritismo e Dial
ética". Evitou assim, assustar a lebre na beira da estrada. Não se iludam, porém, os
espíritas, mormente os
espíritas brasi
leiros, tão afeitos a deixar de lado o que foge ao aspecto religioso da
doutrina. As páginas de Mariotti não se referem a
penas a uma controvérsia filosófica entre as duas
doutrinas que lhe formam o título eventual. Elas são, pelo contrário, um brado de alerta e um convite sério à meditação e ao
estudo. Principalmente ao
estudoda
natureza ética'>dial
ética do Espiritismo e das possibilidades imediatas da sua aplicação ao mundo, — para transformá-lo.
SITUAÇÕES NOVASEssas possibilidades se tornam cada vez mais visíveis, graças ao aceleramento do processo histórico no século atual. A
teoria marxista da luta de
classes, com
provada pelos
fatos, caminha, entretanto, dentro das novas condições da
evolução técnica e do
progresso científico, para formas inteiramente novas. A idéia da r
evolução proletária já não parece tão nítida e precisa como nos fins do último século e nos
princípios deste. Os derradeiros movimentos revolucionários, inclusive o maior deles, a r
evolução chinesa, a
penas teoricamente se basearam no proletariado. As
forças em luta foram antes populares do que proletárias, e não somente no conjunto da massa, mas, também, nos organismos dirigentes. Por outro lado, nos países de maior desenvolvimento industrial, ao contrário do que pressupõe a
tese marxista, a r
evolução proletária se torna mais difícil, como nos Estados Unidos, na Ingla
terra, na Alemanha, na França, na Itália. Nos três últimos, o Partido Comunista tem crescido, não em
virtude das condições específicas da vida proletária, mas das condições gerais, com indiscutível predominância da situação camponesa e da pequeno-burguesa. Podemos perguntar, diante disso: Onde se encontra a "cons
ciência de
classe" do proletariado norte-americano ou do inglês, – este o mais antigo e o mais impenetrável ao marxismo, – para o golpe de libertação no capital acumulado em
escalajamais vista? As condições sociais evoluem com rapidez vertiginosa, os
progressos da técnica, aliados ao desenvolvimento intelectual e psíquica do
homem, geram situações inteiramente novas, e os marxistas se esquecem dos
princípios dialéticos da sua própria
filosofia; continuando apegados a
dogmas já superados pelo processo histórico.
Pietro Ubaldi, em "A Grande Sín
tese", emite este conceito, que os
materialistas dialéticos deviam meditar: "Se a luta foi, a um tempo, de
natureza física, hoje é econômica e nervosa, e amanhã será
espiritual e
ideal, muito mais digna de ser travada."
O CHOQUE APOCALÍPTICOMarx viu, na sua época, a necessidade de construir-se uma
filosofia de
classe para o proletariado, a fim de que este, tomando cons
ciência da sua
missão histórica, se colocasse à altura da mesma. A
filosofia foi construída e tornou-se um dos grandes momentos do
conhecimento humano, mas o proletariado não a absorveu, senão em doses mínimas. Criou-se, por isso mesmo, a
teoria das "minorias dirigentes", e o exemplo do bolchevismo, na Rússia, tornou-se clássico. As minorias, entretanto, só podem vencer, não pela violência, mas pelo excesso de violência, e só podem manter o seu domínio pela
opressão crescente. Quanto estas duras
realidades colocaram o
sonho do socialismo científico distanciado das suas raízes revolucionárias, o tempo se encarr
egou de mostrar-nos.
Surge, assim, uma nova situação mundial. As minorias marxistas criam as potências orientais, enquanto as minorias capitalistas se entrincheiram no ocidente. O nosso grão de areia é dividido nos hemis
férios antípodas que hoje se digladiam, ameaçados de mútua
destruição, pelas perspectivas da guerra atômica. Para lutar contra o imperialismo, contra os trustes imperialistas, a Rússia Sovi
ética teve também de construir o seu próprio poder imperialista, criar o seu estatismo absorvente. O que Marx não previa, aconteceu.
A violência dirigida, metódica, intencional, revelou-se fonte inesgotável de novas formas de violência, em
escalaincalculável. E a
força das idéias mostrou-se mais poderosa do que a própria luta de
classes, mais cria
dora e destrui
dora do que os próprios antagonismos da produção capitalista. A
lei da "negação da negação" lançou-se, como o monstro Frankenstein, contra o próprio cria
dor, pois o
idealismo marxista superou de muito, na sua própria aplicação, a
realidade proletária dos
princípios do século. O marxismo n
egou-se a si mesmo, para dar nascimento ao poder
proletário, face a face com o poder capitalista. Não são, por
acaso, a
tese e a
tese'>antí
tese da
ética'>dial
ética hegeliana, que se defrontam, neste momento, em proporções apocalípticas, no panorama internacional? E a
tese'>sín
tese não virá do novo choque mundial, já em pleno desenvolvimento?
HORA DE LIBERTAÇÃOEssa conclusão tem de ser a seguinte : os marxistas cometeram um dos grandes equívocos da história, ao oferecerem à
força a resistência de outra
força. Não é do choque dos "semelhantes", mas dos "contrários" que resulta a
progresso, e os "contrários" não são determinados pela forma, pela aparência, mas pela substância.
A forma proletária da violência não modifica a substância mesma da violência, e os "contrários", traduzidos a
penas numa expressão for
mal, não podem produzir o
progresso substancial. Por outro lado, o proletariado não é uma substância, mas uma eventualidade, pois a divisão da sociedade em
classes é artificial. Armando-se o proletariado de poderes semelhantes aos da burguesia, transformamo-lo em massa burguesa, da mesma maneira por que esta, em muitos países, inclusive o nosso, armada com os poderes do feudalismo, tornou-se um poder feudal, a
tese'>antí
tese da burguesia francesa que derrubou a Bastilha. Pois o
homem é o mesmo, numa
classe como noutra, e a influência das condições sociais não tarda a se fazer sentir, na sua
atitude perante a sociedade. Esquecer a substância humana no processo econômico é fugir para a
abstraçãode uma
economia autônoma, solta no
espaço e no tempo. Nem foi por outro motivo que a jovem revolucionária polonesa Larissa Reissner, a grande autora de "Homens e Máquinas", ao ver os seus antigos camaradas transformados nos comissários econômicos,
verdadeiros "n
egociantes oficiais do partido", temeu pelo naufrágio da r
evolução no pântano burguês, e preferiu deixar o território da r
evolução para voltar ao
inferno da sua
gênese, na Alemanha burguesa.
Nesta altura, poderíamos surpreender o sorriso irônico dos
materialistas-dialéticos, a nos perguntarem: "Mas o que deveríamos então, opor à
força e ao poder do capitalismo?" Não, não responderemos "o que deveriam", pois palavras foram deturpadas, perderam o seu
verdadeiro sentido, e não queremos que os interlocutores, mesmo imaginários, nos dêem as costas sem mais aquela. Responderemos que tudo quanto se fez até agora tinha de ser feito, estava nas linhas do
determinismo-histórico, na exigência das próprias condições sociais, não poderia fugir às contingências de um mundo em fermentação, impulsionado pelo
instinto e pela
paixão. Voltemos a Ubaldi, que mais uma vez nos esclarece o problema: "Não sois ainda uma sociedade, mas a
penas uma grei, um desencadeamento de
forças psíquicas primordiais, explodindo confusamente."
Mas responderemos, também, que a hora ch
egou, – e agora é, – em que as coisas devem tomar novo rumo. Esse rumo, o Espiritismo o aponta com clareza, a todos os que tiverem "olhos de ver". É o rumo do Espírito, da solução
espiritual, e só ela nos livrará do torniquete da
força contra a
força, da violência contra a violência, do jogo c
ego e inconseqüente do poder
material. Ruskin, Tolstói, Tagore e Gandhi avultam neste momento da história humana.
O INDIVÍDUO E O MEIOAlguns
espíritas não compreendem esse imperativo histórico da
doutrina. Pensam que a
lei de
causa e
efeitoexplica e resolve todas as coisas, cabendo-nos a
penas compreendê-la e aceitar passivamente a sua ação. Esse
pensamento misoneísta, de fundo
místico, aparece até mesmo em "A Grande Sin
tese", o livro de Ubaldi, que já citamos algumas vezes, e que comete ainda o
pecado filosófico de confundir o comunismo científico de Marx e Engels com o comunismo igualitário e ingênuo de Weitling. Outros entendem que a r
evolução espírita é essencialmente individualista, cabendo-lhe transformar o
homem, para que a estrutura social, em
conseqüência, se transforme. É novo equívoco de fundo
místico, e Mariotti o menciona, chegando mesmo a tropeçar nele. Kardec nos indica, entretanto, a necessidade do contínuo
esforço do
homem para se superar a si mesmo e às circunstâncias. A
passividade diante das
leis naturais caracteriza as formas
inconscientes de vida. A cons
ciência está submetida a uma nova
lei, em plano mais alto: a
lei do
esforço próprio, a
lei do trabalho e da atividade livre, que a fará progredir, a si mesma e ao todo a que pertence, à coletividade. Em "O Livro dos Espíritos" encontramos esse
pensamento claramente definido, impregnando toda a obra, e podemos surpreendê-lo em passos como o seguinte: "Tudo se deve fazer para chegar à
perfeição, e o próprio
homem é instrumento de que Deus se serve para atingir os seus fins. Sendo a
perfeição a meta da
natureza, favorecer essa
perfeição é corresponder aos propósitos de Deus." (Perg. 692).
Kardec não é misoneísta. Deus, para ele, é sinônimo de incessante atividade na direção do
bem, é o constante "vir-a-ser" do Universo, atuando por todos os meios e por todas as formas, para atingir o objetivo
ideal. Vejamos, por exemplo, o seguinte trecho do seu comentário ao número 783 de "O Livro dos Espíritos": "O
homem não pode conservar-se indefinidamente na
ignorância, pois tem de atingir a finalidade que a Pro
vidência lhe assinou. Ele se instrui pela
força das coisas. As revoluções morais, como as revoluções sociais, germinam durante séculos. Depois, irrompem subitamente e produzem o desmoronamento do carunchoso edifício do passado, que já não se encontra em
harmonia com as necessidades novas e as novas aspirações."
A renovação do
homem implica a renovação social, – mas desde que o
homem renovado se empenhe na transformação do meio em que vive, sendo esta, aliás, a sua indeclinável obrigação
espírita. Ora, querermos ficar no conceito de uma renovação puramente individualista, seria um contra-senso, simples
ignorância da estrutura social como um todo. Que diríamos de um pedreiro que, para embelezar um edifício, não cuidasse do seu aspecto de conjunto, mas de cada um dos tijolos, isoladamente? E quem poderia negar, dentro da
concepção espírita, que o
homem não é um
indivíduo abstrato, mas p
arte integrante do todo social, sobre o qual exerce a sua influência e pelo qual é influenciado, resultando, dessa constante
simbiose, a sua
evolução e a
evolução coletiva? Como, pois, isolarmos o
homem, para que o Espiritismo o trabalhe no
espaço, independentemente das suas raízes gregárias?
A função do Espiritismo é a renovação
integral do
homem, não a
penas do
homem na sua expressão individual e transitória, mas na sua permanente expressão coletiva. A propósito, aliás, poderíamos lembrar aos defensores do
pensamento isolacionista, a
lei maior do Evangelho, que é a do
amor ao próximo. Não
conheceriam eles o poder do ambiente sobre os
indivíduos, mormente sobre os menos evoluídos? Não saberão que as influências, meso
lógicas determinam quase sempre, o próprio
caráter individual? Não
perceberão que uma vida social mais equilibrada, e portanto mais justa, será o grande e permanente
estímulodo
progresso individual?
POR UMA CONSCIÊNCIA HUMANISTASe a experiência nos mostra que a formação de uma "cons
ciência proletária" é praticamente inviável, pois, entre outros motivos, a própria r
evolução proletária vem sendo impulsio
nada e dirigida por
forças estranhas ao proletariado; não somente desde os seus pródromos, mas ainda, hoje, e cada vez mais; se nos mostra que a "
filosofia do proletariado" não consegue atraí-lo e empolgá-lo mais do que a demagogia fascista ou o diversionismo democrático dos países capitalistas mais altamente industrializados; se nos revela ainda que a vitória das chamadas "minorias conscientes" cria novos e violentos antagonismos internacionais, cada vez mais agressivos, – é e
vidente que só nos resta procurar uma saída humana, e não proletária nem burguesa, para essa terrível situação. A saída não será a da sub
missão, a do pescoço entregue mansamente à canga, mas não será também a da violência e a da
força.
Se Marx reconhece no proletariado o potencial revolucionário, que a sua
filosofia devia armar da necessária orientação para a luta, e se essa orientação só seria possível através da
criação da "cons
ciência de
classe", não teremos, nesse mesmo
fato, o exemplo e a indicação do que nos cabe fazer? A massa que hoje se depara à nossa frente, explorada e sofre
dora, não é a
penas o proletariado, mas essa multidão heterogênea, que se chama
povo,
humanidade, e que as
classes dividem de maneira for
mal, mas não substancial. Ao mesmo tempo, a situação das
classes dominantes é de
angústia e desespero, pesando sobre elas as
conseqüências morais inevitáveis do usufruto indevido e da exploração dos semelhantes. O capital, o dinheiro, o poder, as comodidades, não bastam para salvá-las e, pelo contrário, cada vez mais as precipitam no pântano da corrupção
moral e social.
Diante disso, cabe-nos repetir o gesto de Marx, oferecendo agora uma
filosofia, não a esta ou àquela
classe, mas a toda a
humanidade, para armá-la da orientação necessária, através da
criação de uma "cons
ciênciahumanista". Entreguemos essa
filosofia de libertação, essa arma de defesa
moral, esse instrumento de luta social, ao
homem de todas as l
atitudes e de todas as
classes, e trabalhemos pela
criação da "cons
ciênciahumanista" nos
indivíduos em particular e no meio social em geral.
ELEVAR A TERRA NA ESCALA DOS MUNDOSNão nos iludamos, porém, quanto aos
métodos de ação que devemos empregar. Simples evangelização ou catequização, nos
moldes religiosos, não dará resultados, porque nos amarram, pelo contrário, às antiquadas formas sectárias, que proliferam por toda a p
arte e criam divisionismos estéreis e perigosos. O Espiritismo tem de descobrir a sua própria maneira de agir, tem de forjar as suas próprias armas, inteiramente novas, tão diferentes das usadas pelo processo do religiosismo clássico quanto pelo
materialismo-dialético. Talvez nesta altura nos pudessem servir de "pontos-de-referência" algumas longínquas tentativas históricas, como a de comunidade apostólica, de que nos dá notícia "O Livro de Atos", ou ainda as recentes colônias de produção do Estado de Israel. O certo, porém, é que precisamos estabelecer os fundamentos sólidos e definidos, do Espiritismo Dialético, aplicando-o, no plano sociológico ou histórico, rumo à sociedade futura.
Ele mostrará, com base na experiência secular e no
estudo objetivo da
natureza humana, do
homempsicológico, que não se pode construir um mundo social harmônico através da violência social, mas tão-sornente do desenvolvi mento do
espírito coletivista de cooperação. E que a sociedade, como o
homem, – sem cairmos rigidamente mo organicismo spenceriano, – tem as sua fases evolutivas
bem definidas, que não poderemos deixar de considerar, pois Engels já nos ensinou que não desprezaríamos impunemente a
ética'>dial
ética.
Assim, se aquilo que o
homem só podia resolver pelo empr
ego da
força bruta, no seu estado primitivo, consegue fazê-lo pelo raciocínio e pela técnica, no estado de civilização, também a
humanidade, superada a fase primitiva da sua elaboração social, pode caminhar, sem o uso da violência brutal e instintiva, para a r
evolução coletivista. Isso não quer dizer que a luta não se processe, que tenha sido interrompida no seu organismo, e que tenhamos de esperar o advento espontâneo da nova forma social, mas a
penas que a luta se desenvolve de maneira diversa, em plano mais alto, como
bem o definiu Ubaldi.
Aproveitemos, pois, a oportunidade que Humberto Mariotti nos oferece, com a sua "interpretação
espiritual da
ética'>dial
ética", para meditarmos sobre esses assuntos e buscarmos a forma que nos falta, de oferecer ao mundo a solução
espiritual do problema social. De fazermos, enfim, que o Espiritismo cumpra a sua
missãohistórica, vencendo a crise que o reduz, no momento, a uma luz bruxuleante em meio de densas
trevas, a uma espécie de simples refúgio individual para as decepções e para as aflições humanas. Pois o seu
destino, como assinalou sir Olíver Lodge, não é a
penas o de consolar corações desalentados, mas o de rasgar para o mundo as perspectivas de uma nova era. Se a
fé dogmática determinou o fanatismo religioso da Idade Média, com suas fogueiras sinistras, a
fé racioci
nada criará o
positivismo religioso do terceiro milênio, com as piras da fraternidade acesas em todos os quadrantes do
planeta. Porque, como já o dissera Kardec, a tarefa do Espiritismo é a de elevar a Terra na
escala dos mundos, transferindo-a da cat
egoria expiatória para a de Mundo Regenera
dor.
Prefácio da obra Dial
ética e Metapsíquica, do filósofo portenho Humberto Mariotti,
originalmente publicada pela Édipo – Edições Populares Ltda. em fevereiro de 1951. Republicado em livro por A Fagulha, de Campinas-SP, editora do Movimento Universitário Espírita (MUE), em 1971.
José Herculano Pires (1915-1979), jornalista, filósofo, tradutor e grande intelectual
espírita brasi
leiro, autor de mais de 80 obras sobre Espiritismo, Filosofia e Para
psicologia, dentre outros temas.